sábado, abril 26

Crítica: O Pagador de Promessas (1962)


Por Wendell Marcel


"Um clássico do cinema brasileiro".

O diretor brasileiro Anselmo Duarte foi a Cannes, em 1962, e levou para casa a Palma de Ouro pelo seu filme de maior sucesso nacional e internacional, O Pagador de Promessas, uma adaptação da peça teatral de Dias Gomes. Na ocasião da premiação, derrotou dois grandes filmes do cinema mexicano e italiano, as obras-primas O Anjo Exterminador (de Luís Buñuel) e O Eclipse (de Michelangelo Antonioni). O longa-metragem de Anselmo Duarte também foi indicado ao Oscar no ano seguinte, perdendo na categoria de Melhor Filme Estrangeiro para uma película francesa. Ora, o histórico estrelar de O Pagador é reflexo do poder cinematográfico e de linguagem visual, fruto de uma visão instrumental e poética de Cinema do seu realizador, que começou como ator na pornochanchada, atuando já no final dos anos 50 como ator e diretor. Ocasionalmente, o nome de Duarte é mencionado como um dos maiores cineastas brasileiros de todos os tempos; àquele o qual fez abrir as portas para grandes estrelas da televisão e do cinema, nas décadas seguintes ao O Pagador, como Norma Bengell, Glória Menezes e Leonardo Villar. Um fato é certo, a década de 60 no Brasil foi o boom cinematográfico, onde nomes como os de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos (bem antes, em 1954, filma Rio 40 Graus, um marco e precursor do Cinema Novo), Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, Trigueirinho Neto entre outros tomaram a tela da projeção com toda a força de suas produções. Com Anselmo Duarte, assim, dar-se o impulso no novo cinema brasileiro: o social, o econômico, o da cultura, o da inteligência cinematográfica no copião e na tela.

A peça de Dias Gomes foi encenada pela primeira vez em 1960, no Teatro Brasileiro de Comédia de São Paulo, e para o dramaturgo, o texto retrata "a história de um homem que não quis ceder e foi destruído". O roteiro de Duarte, que opta por adicionar novos cenários (a exemplo do hotel onde Rosa supostamente traíra Zé do Burro com o garanhão da região, Bonitão; o jornal; a sala onde os profissionais da Igreja se reúnem e o prólogo do filme) amenizam o impacto da representação da escadaria como um organismo vivo, onde os personagens se "mostram", apresentam-se ao espectador com os defeitos de caráter; em síntese, o local da ação dos personagens, que põe no ringue ideológico o homem do interior com os sujeitos da cidade, não diminuem o impacto da obra. O padrinho de François Truffaut, o teórico e crítico de cinema André Bazin, acerca do teatro e do cinema, vai dizer que "ou o filme é a pura e simples fotografia da peça (logo, com seu texto), e é precisamente o famoso 'teatro filmado', ou a peça é adaptada às 'exigências da arte cinematográfica'". Portanto, Anselmo Duarte ao adaptar a obra teatral de Dias Gomes, ao passo que não subverte a história e os diálogos, promove a passagem do texto para o cinema através da linguagem cinematográfica. Não vi a peça encenada, mas ver o texto original adaptado e filmado para o cinema, é sobretudo dilacerante. Pois, nem sempre o cinema diminui o texto teatral, vide Tennessee Williams e William Shakespeare.

No filme, a escadaria, atente, tão usada no kinema como proposta de significar um sentido trágico, inserido no macrocosmo da cidade (solidão, violência), é a eterna via crucis do homem e da mulher: entre o bar (em frente a escadaria, um antro de perdição, de pecado) e a igreja (no final da escadaria, um lugar ao sol, o local da salvação) fica Zé do Burro, submergindo ao "inferno", onde residem os mal-feitores, os imorais, a ação dramática do "pecado"; emergindo ao céu, que o filme critica como uma representação indissociável da categoria de santidade e pureza. Ele está, portanto, no purgatório, posicionando-se ao julgamento de ambos os homens e mulheres, e do divino. Tão logo os personagens do "local da salvação" e do "antro de perdição", eles passeiam sem nenhum desdem pela escadaria. Zé do Burro pouco faz isso, submergindo para salvar os seus, a sua mulher; para ele o inferno está no lugar do céu, o demônio no lugar dos santos. Ele não é burro, é sim ingênuo. Então, quem são os burros? O Bonitão? Marly? O padre? O jornalista? 

Percebe-se a dissonância cegante da influência da cidade como um agente de transformação. Que grupo seria mais manipulador de discursos do que os jornalistas, interpelados pelo diretor do filme na posição de que a chapa é também, assim como o texto escrito, as palavras ditas, singulares movimentos inconstantes de transfiguração mediante a erraticidade dos ouvintes, dos leitores, dos personagens da vida real? Apresenta-se a fonte estética de Billy Wilder que Anselmo Duarte, ao ler Dias Gomes, bebeu em A Montanha dos Sete Abutres. Acerca disso, a peça de Nelson Rodrigues, possivelmente, recorre a Wilder, a Gomes, e escreve O Beijo no Asfalto; enquanto que sua adaptação anos mais tarde, recorre a Duarte. É a influência pela influência, a fonte para a criação. As artes se completam, é certo, consubstanciam-se. Conclui-se que os barganhos estéticos e da linguagem no cinema brasileiro são imensuráveis em O Pagador de Promessas, como o imperioso enredo, discretamente engajado no guião de A Marvada Carne, ou no simpático Tapete Vermelho, de Luiz Alberto Pereira, décadas mais tarde.

A fé, a segregação religiosa, o sincretismo cultural. Ganchos constitutivos para compor uma obra-prima. Cenas marcantes do filme continuam na mente, é de pele; o espectador é um sobrevivente ao término da sessão. O padre enlouquecido pelo som dos berimbaus, desenfreia um combate de gladiadores no campo das dúvidas ao bater nos sinos. As categorias de tempo e espaço, principalmente o primeiro, através da montagem, figuram para que o espectador esteja mais próximo de Zé do Burro. Uma teia psicológica é criada, não tem como fugir da escadaria; do medo de não concluir a promessa; da culpa de ter traído o marido; de não ser amada por um vigarista; de subjugar um pobre coitado pagador de promessas.

O real reproduzido no filme (os produtos que ele oferece, como: personagens, enredo, ideal de assimilação) é captado pelo espectador, afetando os seus sentimentos e adquirindo uma significação ideológica. Ora, não precisei ser católico, ser umbanda, ser candomblé ou ser agnóstico, como Duarte o foi, para poder falar com o filme. Senti-lo. Esses três processos estão claramente bem trabalhados na construção de roteiro, enquanto são pensadas pelo diretor, a linguagem para torná-lo um quadro. No ápice, bastou o dedilhar do berimbau, para que Cannes se curvasse ao filme. É isso, é um quadro que explode na tela. Basta a desolação harmoniosa de Rosa, nos planos abertos, solitários, mostrando o quão pequenos somos na arquitetura da construção de ideias e crenças; os engenheiros que tentam imputá-las são destruídos. Por que as ideias e as crenças, podem nos fortalecer ou nos destruir. 

Nota: 9,0/10,0



Trailer:

5 comentários:

  1. Que texto sensacional! Lembro do filme e da energia que ele trazia, a mise-en-scene é bem trabalhada de um modo que tudo acontece a favor do filme, como o dedilhar do berimbau invadindo a igreja, como uma cena nascida para ser clássica

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  2. Valeu, Maurício.
    O filme dá pano pra manga na questão de referência e etnologia.. por exemplo, a peça de Vinícius, Orfeu da Conceição, foi filmada três anos antes, e não foi uma boa adaptação, talvez pq que foi a França e não o Brasil a fazê-lo. Você viu Di Cavalcanti, do livro do poeta, e quem filmou? Então rsrs... O Pagador é brasileiríssimo, com referências é claro, de outros estudos, mas centralizado e objetivado na nossa cultura.

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  3. Lindo texto......Clássico que amo. O Brasil, a meu ver, valoriza pouca essa obra tão relevante.

    Filme imperdível. Sensível e que representa nossa cultura ao pé da letra.

    abs

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  4. Texto incrível, Wendell. Esse filme é mesmo a pérola do nosso cinema. E o lindo "Central do Brasil", claro, rsrs. No mais, gostei da sua interpretação da escadaria e da citação a Billy Wilder. Obra-prima do Brasil!

    Abraço!!!
    Valew!!!

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  5. Ótimo texto, realmente é um belíssimo filme, com certeza está entre os cinco melhores da história do cinema brasileiro.

    É uma pena que o diretor e ator Anselmo Duarte não tenha conseguido chegar próximo da qualidade apresentada aqui em seus filmes posteriores.

    Abraço

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