segunda-feira, julho 28

Crítica: Gilda (1946)


Por Conde Fouá

Como? Se eu já tinha anteriormente deitado meus olhos sobre Gilda? Sim. No entanto ao rever através do recurso do DVD esse filme percebi que ou eu estava sem óculos ou estava distante do que vira. Não sei se alguém já escreveu algo da forma como eu escreverei. E nem estou certo se conseguirei colocar em palavras o algo que percebi em seu arcabouço. E tampouco sei se tal visão é correta. De qualquer forma a escrevo de forma a não perder a ideia. E estou aberto a qualquer crítica e aprofundamento da questão.

“Em Buenos Aires, Farrel é um americano que ganha sua vida enganando jogadores nos dados, mas uma noite ele é agredido por uma de suas vítimas. Das sombras um homem distintamente trajado o salva e lhe indica um cassino que poderia frequentar. No Cassino Farrel se dá conta que seu salvador desconhecido é o dono do local: Ballin Munson. Esse o contrata após ser convencido de sua utilidade. A amizade e a confiança mútua entre ambos cresce a medida que o tempo passa a ponto de firmarem um pacto: Não haverá nunca ninguém entre eles e o jogo. Só que um dia Ballin conduz a sua casa, logo após uma viagem, sua nova esposa: a bela Gilda.”

A primeira questão fechada sobre a obra é que se trata de um filme noir americano. Consenso quase geral e que eu não possuo argumentos para questionar (e nem pretendo). Agora é um filme americano que faz uso de uma cidade que a época da feitura do filme era cosmopolita. E a Buenos Aires vista no filme nada se assemelha a realidade. E nós nem colocamos isso como um empecilho, uma crítica contra o que foi construído e nos apresentado enquanto obra. A história está tão bem urdida, o elenco tão afiado, a direção tão inspirada que o real da tela nos cativa. Onde já vimos isso? Não precisamos ir muito longe. Basta recuar uns dois pares de ano e nos lembrarmos de Casablanca. Casablanca é um filme realizado em estúdio (tal como esse) e nada possui de verossimilhança com a capital do Marrocos. Mas é impossível deitar os olhos sobre um mapa geográfico e ao ver o local não nos remetermos ao filme. Casablanca criada por Hollywood tem ares de uma cidade mitológica povoada por personagens carregados de sentimentos que tão bem conhecemos. E o filme de 1942 soa até hoje como algo que todos tentam tocar. E Casablanca ao menos soa mais generosa que Germelshausen (Brigadoon) já que ao contrário dessa que só surge uma vez cada cem anos, podemos revê-la  mais rapidamente, bastando para nós nos colocarmos diante da tela quando a oportunidade surgir (antes do advento do Vídeo Cassete, DVD, Blue Ray os Cineclubes ao menos duas vezes ao ano punham em cartaz o filme – como no feliz curta  Nem Tudo Que É Sonho Desmancha No Ar ) Mas diachos o que este cara está falando, dirá um atônito leitor. O filme a ser discutido não é Gilda?! Sim é. Mas voltando a Casablanca. Na década de 40 o impacto causado pelo filme produziu obras que tentavam imitá-lo como “Os Conspiradores” e “Uma Aventura Na Martinica” para ficarmos em duas. Tiveram lá o seu êxito, mas ficaram distantes do que pretendiam homenagear.  Já Gilda...

Acredito que Gilda se vale do esqueleto de Casablanca de uma forma sutil e inusitada. Só que os personagens e o clima são distintos daquele do filme de Curtis. Em Casablanca o que víamos na tela eram refugiados e vários artistas em papéis similares (eram também refugiados: Peter Lorre, Conrad Veidt, Marcel Dalio, etc).

O que em primeiro lugar distingue ambos os cenários é que em Casablanca a Guerra estava ainda presente. Em Gilda a história se dá logo após seu término em uma cidade em um país que serviu de pátria para muitos adeptos do Eixo.

Num segundo momento os personagens são em geral, cópias mais negras (excetuando-se o detetive Maurice Obregon) daqueles de Casablanca:
Johnny Farrel é um Rick mais empedernido: Um jogador profissional e trapaceiro que possui uma única fraqueza: Gilda.  Mas ele não é um apaixonado e encontra no homem que a possui qualidades semelhantes a sua. Ele tudo faz para o proteger (vê Ballin como seu alter ego). E acha que punirá sua ex amante a mantendo presa de uma certa forma a Ballin (ou ele mesmo).

Gilda é uma Ilsa sem a aura romântica, dotada de uma beleza mais sensual, de corpo frágil e sobretudo que transpira uma fatalidade. Está ao centro da amizade entre dois homens e sabe que é desejada por ambos. Simboliza a amante e a amada. Ela somente desposou Ballin para agredir Johnny. A sua beleza estonteante e o distanciamento e artifícios que faz uso para agredir o amado demonstram que o romantismo se existe está encoberto por camadas de máscaras sociais. É uma armadura para se defender de um mundo que está longe de possuir uma aura de paraíso.  

Ballin é o personagem mais ambíguo da película, de uma certa forma indescritível. A maneira como o ator George MacReady o compôs nos desconcerta: Ambicioso, egoísta, possessivo, calculista e dono de si. Sempre vestido elegantemente, ora com um roupão, lenço destacado e uma dicção suave trazendo junto a si uma bengala punhal, tão afiada como seu pensar. O Johnny que ele enxerga não é o real, mas aquele que simboliza sua ideia de amizade. Ele brinda sempre em trio: o terceiro personagem é essa bengala (símbolo fálico?). Difícil classificá-lo tendo em conta Casablanca. Seria como o inspetor Renault totalmente vendido ao Furher.  E também temos na  relação entre os dois algo que desemboca em uma cumplicidade maior: Os três personagem são vetores de uma sexualidade – hetero ou homo – permanente durante toda a película, driblando de forma inteligente os limites da censura da época. Ballin então tem todos os motivos para querer matá-los: foi duplamente traído e perdeu a ambos.  Não é possível a saída: “Isso é o começo de uma grande amizade”.

Tio Pio é um velho que tem ares de filósofo. Mais contundente que Sam, ele não perde a oportunidade de escancarar o que pensa. O que Sam tem de submisso, Pio possui de ousadia. Não custa lembrar que ambos, no entanto estariam como espectadores da história, algo que em Gilda deixa de se assemelhar ao filme de Curtiz devido a atitude final de Pio.

O detetive Maurice Obregon é um Renault que não precisa agradar nazistas ou nacionalistas. E também não se aproveita de sua posição. Está ali como o personagem mais insípido de toda a trama.

Outro momento que muito se assemelha a Casablanca é a primeira aparição da fêmea na tela. De forma inesperada e que causa estupefação e tremores no amado.

Gilda não quis ser concebido como um filme que imitasse Casablanca. No entanto soa-me que seus autores ao buscarem a originalidade, deixaram de forma inconsciente, que o filme de Curtiz lhe enriquecesse a criação. É a impressão que tive ao término da projeção. De qualquer forma cabe a quem não viu o filme o conhecer. E os que já degustaram das duas obras assisti-las novamente. Quem sabe mais alguém enxergue o que eu vi. E se não notarem semelhança nenhuma ao menos serão agraciados ao fim da projeção com o que de melhor era produzido na década de 40 nos Estados Unidos. É isso.

Nota: 8,5/10,0


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