sábado, agosto 29

Crítica: Apocalypse Now (1979)



Por Kaio Feliphe


"A loucura de Coppola originou um dos maiores filmes de todos os tempos."


O texto a seguir contém spoilers
Aconselha-se a leitura apenas para quem viu o filme.

“Meu filme não é um filme. Meu filme não é sobre o Vietnã, ele é o Vietnã. É como foi. Uma loucura. E nós o fizemos do modo como os americanos estavam no Vietnã. Estávamos na selva, éramos muitos. Tínhamos acesso a muito dinheiro, muito equipamento. E pouco a pouco, ficamos loucos.”
Francis Ford Coppola, Festival de Cannes 1979

Foi assim que Coppola definiu Apocalypse Now [Apocalypse Now, 1979]. Um filme que transcende os rolos de 65 mm e retrata a completa insanidade que foi a Guerra do Vietnã.

Levemente baseado na obra de Joseph Conrad, Heart of Darkness, o filme conta a história do Capitão Willard (Martin Sheen), que recebe uma missão de ir aos confins do Camboja para assassinar o Coronel Walter E. Kurtz (Marlon Brando), que teria ficado louco e comandava como bem entendia sua tropa, não respeitando as ordens do exército americano.

Só que Apocalypse Now não é exatamente sobre a guerra do Vietnã, mas sim sobre a mente humana. Como o próprio General Corman diz ao entregar a missão a Willard, todo homem tem o seu ponto de ruptura (seu breaking point), onde ele simplesmente perde o controle de sua própria mente. E na viagem de Willard rio acima para encontrar Kurtz, vemos vários desses homens que já ultrapassaram seu breaking point, e estão completamente fora de si.

Na primeira parada, Willard e seus soldados encontram o Tenente Kilgore (Robert Duvall), nome que brinca com as palavras kill e gore, já indicando a sua natureza. Nela, Willard vê a primeira das insanidades da guerra do Vietnã. Kilgore e sua tropa desumanizam completamente os vietcongues. Não mostram empatia, compaixão ou qualquer outra coisa; eles simplesmente os matam.

A grande ironia é que Kilgore se vê como um salvador. Em vários momentos vemos helicópteros e caminhões levando mulheres e crianças feridas. Na cabeça de Kilgore, seus soldados estão fazendo o bem, eliminando o inimigo; só que, ironicamente, eles são a causa de todo aquele caos.

Coppola ressalta isso no lindo segmento da Cavalgada das Valquírias. No meio da sequência dos helicópteros em formação indo ao ataque, Coppola joga algumas cenas do vilarejo que vai ser atacado. Mulheres sentadas fazendo cestas artesanais e crianças que, aparentemente, voltavam da escola. Kilgore tenta protegê-los atacando com bombas de napalm. A loucura se completa quando ele se “recompensa” surfando. É por isso que Kilgore luta, pelo amor ao combate, à carnificina e pela recompensa.

O cheiro da gasolina era cheiro de vitória. Não achar nenhum maldito corpo era um troféu para ele. E, com um tom nostálgico, completa que um dia a guerra vai acabar.
"Eu amo o cheiro de napalm pela manhã. Uma vez, nós bombardeamos uma colina por 12 horas. Quando acabou eu fui lá dar uma olhada. Eu não achei nenhum maldito vietcongue. Mas o cheiro, sabe? O cheiro de gasolina, por toda a colina... Cheirava a... vitória. Um dia essa guerra vai acabar."
A segunda parada de Willard é numa estação do exército onde irá acontecer um show das coelhinhas da Playboy. O local é como um oásis para aqueles soldados onde, por alguns minutos, eles poderiam matar a saudade de casa. Só que eles acabam atacando as próprias coelhinhas. Seu desejo de voltar para casa, sair daquele inferno era tão grande que se chegou ao ponto de atacar inocentes americanos. Não havia mais a distinção, era cada um por si.

Até aqui Willard tinha mostrado poucas expressões de emoção. Só que, ao pedir a um comandante daquele local um pouco de combustível e ele, amigavelmente, tenta explicar que era um dia muito movimentado com muitos barcos, Willard, em seu primeiro momento de expressão, tenta agredi-lo. Willard estava disposto a encontrar Kurtz, e nada poderia atrasá-lo.

O próximo ponto é a ponte Do Long. Um dos pontos mais perigosos e a divisa entre o Vietnã e o Camboja. Soldados carregando malas e pedindo para irem embora, atirando nos vietcongues tentando proteger a ponte que é construída e destruída num ciclo doentio, completamente afetados mentalmente. Willard vaga por esse ambiente psicodélico, sabendo que todos aqueles estão fadados à loucura.

A última parada do barco é na fazenda dos franceses. A sequência que só é vista na versão Redux de 2001 é sublime. Ao chegar perto da fazenda, uma cortina de fumaça encobre o barco. Num ambiente quase onírico, Willard se junta aos franceses para jantar e passar a noite. 
“Vocês estão lutando pelo maior nada da história!”
É assim que um dos franceses definiu a Guerra do Vietnã. E como não concordar? Soldados, onde muitos são apenas adolescentes (Clean, personagem do na época jovem Laurence Fishburne, tinha apenas 17 anos), são mandados para longe de casa para enfrentar o “inimigo” por simplesmente nada. E a frase ganha mais força depois do que vimos até aqui. Uma sucessão de insanidades por nada.

“(...)
Aqueles que passaram
De olhos diretos, para o outro Reino da morte
Recordem-nos - se de todo - não como almas
Perdidas e violentas, mas apenas
Como os homens ocos
E empalhados.”
Trecho de The Hollow Men, poema do escritor americano T.S. Eliot

Por fim, Willard encontra o esconderijo de Kurtz. Um lugar que destoa de todo o resto do mundo. Um reino em que o ser humano vive como se nunca tivesse existido qualquer tipo de civilização. Animal, no sentido mais bruto da palavra. Willard volta ao passado viajando rio acima e, pouco a pouco, vai se tornando o próprio Kurtz.

No começo do filme, Willard é um homem oco. A guerra sugou completamente a sua vida, a sua sanidade. A cena de abertura, com o rosto de Martin Sheen sobreposto por explosões de napalm na selva do Vietnã é o retrato de sua mente perturbada. Willard não pertence mais a sociedade; ventiladores são helicópteros de guerra, qualquer barulho no meio da madrugada é alguém tentando matá-lo, e sua segurança é uma arma debaixo de seu travesseiro. Após receber sua missão, Willard é empalhado gradativamente. Sua mente vai cada vez se tornando mais parecida com a de Kurtz e, só após passar pelo reino da morte, Willard chega ao seu destino.

Apocalypse Now é um monumento. O auge artístico e criativo de Coppola e da Nova Hollywood. Uma experiência cinematográfica tão poderosa que o próprio Coppola quase foi a loucura (ou foi) durante a sua realização. Uma obra que transcende qualquer barreira e finca a sua mensagem na mente de qualquer um que, de alguma maneira, se envolveu nela; seja dirigindo, atuando, escrevendo ou assistindo. Com certeza, uma das maiores realizações artísticas da humanidade.

Nota: 10.0/10.0








Trailer: